O que é a Nova Globalização
1. Introdução
O instituto República do Amanhã realizou no dia 27 de setembro um seminário para discutir o que é a nova globalização. O texto abaixo se inspira e tentar se manter fiel às excelentes apresentações de Octávio de Barros, Marcos Troyjo e Otaviano Canuto.
O texto não é um resumo das três apresentações, pois a ordem dos argumentos foi alterada para criar uma argumentação que combine os diversos pontos abordados. O texto também sofre a influência do livro lançado ao final do seminário, Apelo a Razão, escrito por Fabio Giambiagi e Rodrigo Zeidan e lido nos dias subsequentes.
Da mesma forma, o texto não tem como evitar que a organização de ideias seja influenciada pela visão e interpretação do autor sobre os diversos temas abordados, o que inclui também a dificuldade de capturar e mencionar a riqueza de todas as articulações de ideias e colocações apresentadas no seminário.
Em suma, o texto se inspira nas apresentações, mas a responsabilidade pelos desvios de narrativa, ideias e eventuais conclusões são de responsabilidade do autor.
Um fato importante foi mencionado numa das apresentações: um dos objetivos mais instigantes da discussão econômica nas últimas décadas ainda é inferir porque algumas nações prosperam, enquanto outras falham, ou ficam presas na armadilha da renda média, como se tornou o caso do Brasil desde o início dos anos 80[1].
Entre os vários aspectos explicativos, um deles é a capacidade de os países desenharem e implementarem um conjunto de regras (instituições) para o bom funcionamento dos mais diversos mercados existentes na economia de um país, de forma que estas instituições se combinem da melhor maneira possível aos contornos cambiantes da globalização e usufruam de seus benefícios, dado os valores societais da população. Países sempre são parte, mesmo que distante, da globalização[2].
2. Contornos cambiantes há mais de dois séculos
O primeiro ciclo de globalização começou por volta de 1800 em torno da economia da Inglaterra. As tecnologias que impulsionaram o rápido aumento da renda per-capitainglesa,após milênios de crescimento risível da renda no mundo, obrigavam as atividades a se localizarem próximas da produção de partes e componentes.
A redução do custo de transporte à época favoreceu o comércio de bens finais industrializados, pois as etapas da produção se davam próximas as fontes de energia, ou junto dos maiores mercados consumidores. O grande beneficiário foi os Estados Unidos, cujas instituições foram capazes de se adaptar aos contornos da economia global no período e expandir continuamente a sua renda per-capita.
Os benefícios foram suficientes para que a produção de bens e serviços nos Estados Unidos superasse o produto da Inglaterra por volta de 1870 e, posteriormente, ultrapassasse a renda per-capitainglesa no início do século XX, a primeira mudança na posição relativa do porte das economias e mercados desde o início da Revolução Industrial pouco mais de um século antes.
Os Estados Unidos foram assumindo um papel cada vez mais proeminente na economia global até que, logo após a 2aGuerra Mundial, se tornaram completamente hegemônicos na economia global num momento em que apresentavam renda per-capita50% acima que o Reino Unido e o dobro da Europa continental (a renda europeia estava deprimida pelos efeitos da Guerra)[3].
A primeira fase do processo de globalização, que muitas vezes recebe a denominação de Globalização 1.0, havia terminado bem antes da consolidação da hegemonia americana em razão do início da 1aGuerra Mundial em 1914 e seus efeitos sobre o comércio e movimentação de pessoas na Europa. A hegemonia americana começou, portanto, em um período de pouca expansão no volume de comércio, ou mesmo na movimentação de fatores entre os países, como capital e trabalho.
Uma sequência de eventos restritivos, como a 1aGuerra, a Revolução na Rússia em 1917, a Grande Depressão dos anos 30, a 2aGuerra Mundial entre 1939 e 1945 e vários conflitos posteriores que subsistiram nas décadas subsequentes da Guerra Fria em que a economia global se dividiu entre o mundo capitalista, o mundo comunista e o chamado 3omundo contiveram uma nova globalização da economia mundial[4].
3. O Segundo Ciclo da Globalização
O segundo ciclo de globalização se iniciou cerca de ¾ de século após a interrupção do primeiro ciclo pela 1aGuerra Mundial.
Um passo anterior, mas que resultou na maior de todas as influências sobre esta segunda fase da globalização, foi o conjunto de reformas iniciado por Deng Xiaoping em 1979, um momento em que a sociedade chinesa, então comunista, começou a adotar instituições capitalistas como preços livres e a possibilidade do agricultor produzir excedentes a serem vendidos ao mercado, ou ao governo.
Outras instituições capitalistas foram adotadas na China posteriormente, como a propriedade do imóvel residencial, ou comercial (na verdade era a posse por 70 anos, passível de reversão ao governo após o período). Essa forma de propriedade permitiu a venda e a compra de imóveis residenciais e comerciais, o que incentivou uma atividade frenética de construção civil ao ponto de influenciar o preço global das matérias primas relacionadas nas primeiras décadas do século XXI.
As Zonas Econômicas Especiais, também criadas nos anos 1970, permitiram a introdução de outras instituições capitalistas num país comunista para a produção de bens para exportação, como relações de trabalho assalariado e o lucro das empresas. As ZEE produziram enorme riqueza em regiões específicas e atraíram a migração de trabalhadores. O governo chinês manteve controles estritos sobre os movimentos da população dentro do país para evitar o acúmulo de pobreza nas grandes cidades, o chamado hukou (controle de residência), e regulou, desta maneira desde então, os ritmos de migração e crescimento acelerado do produto chinês[5].
Outro passo crucial foi o fim do regime comunista na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, processo que se estendeu desde a queda do muro de Berlim em 1989 até a dissolução de fato da URSS em 1991.
A incorporação dos trabalhadores chineses, russos e das demais ex-repúblicas socialistas soviéticas, leste europeu e países que abandonaram o comunismo no leste da Ásia, África e América Central representou a incorporação de 920 milhões de trabalhadores (650 milhões na China e 270 milhões em outros 40 países), o que aumentou em 70% a força de trabalho global ao se somar ao 1,35 bilhão de trabalhadores empregados nas economias capitalistas em 1991[6].
Uma série de mudanças tecnológicas já vinham em curso no mundo nas três décadas que antecederam o fim do comunismo na Rússia, Ásia e Leste Europeu. A grande empresa transnacional já desenvolvia o processamento de dados em larga escala, através do mainframe, ao passo que também migrava para a miniaturização dos processadores até o lançamento do computador pessoal (PC) em 1980.
A tecnologia da informação reduzia drasticamente o custo da comunicação (dados e voz), enquanto a concomitante redução do custo de transporte permitia (pelo uso do contêiner) a gradual fragmentação da produção na qual as várias partes de um produto podiam ser produzidas em diferentes países para reduzir seu custo[7].
Surgia assim o conceito da cadeia de valor, na qual as etapas de produção não precisavam mais estar próximas entre si e a empresa transnacional podia buscar o menor custo de produção ao redor do mundo. As grandes multinacionais iniciaram nos anos 90 a formação de suas cadeias de valor, ao mesmo tempo em que se concentravam no core businesse sub-contratavam etapas da produção, ou mesmo produtos finais, nos mais diferentes países. Algumas transnacionais liberavam inclusive as suas subsidiárias para produzirem produtos locais mais adaptados ao mercado consumidor de renda mais baixa, ou elevada.
Essa combinação de mudança tecnológica, a forma que as empresas montaram as suas cadeias de valor e a incorporação das economias da China e do ex-mundo comunista ao mundo capitalista que voltava a se globalizar resultou em profundas mudanças no desenho das instituições das economias nacionais.
A principal foi no marco regulatório dos países. A participação na formação das cadeias de valor que buscavam baixo custo de produção e acesso ao fator trabalho necessitava do aumento da abertura comercial, o que aconteceu na maioria das regiões do mundo, à exceção da América Latina que se manteve mais fechada[8].
A visão consensual nos anos 90 era o predomínio dos mercados livres, da fácil circulação de bens e fatores de produção como capital e trabalho (pela migração) e a supremacia do primado da lei, ou do estado de direito. Em suma, era o elogio das qualidades que definiam o mundo ocidental e a referência era os Estados Unidos[9].
4. Processo Inescapável
A maioria dos países e governos na passagem dos anos 90 viam o processo de globalização que ganhava força como um processo inescapável de integração econômica, política e jurídica.
A integração da Europa na União Europeia (UE) marcou as várias etapas deste processo. Houve um esforço de integração política (Parlamento Europeu), jurídica (Tribunal Europeu de Diretos Humanos) e, finalmente, econômica com a harmonização das políticas fiscais, trabalhistas e regulatórias até a adoção da moeda única Euro em 1999.
Outros processos aconteceram no período. Os Estados Unidos se associaram ao México e ao Canadá numa área de livre comércio (NAFTA, 1994) e, simultaneamente, o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai criavam o Mercosul, também em 1994, embora este último fosse um mercado comum – uma integração mais avançada do que uma área de livre comércio – mas que se abriu apenas entre os países-membros e manteve a proteção contra as outras regiões[10].
Estes processos de integração regional marcaram o que se chamou de globalização profunda (Deep Globalization), ou a globalização 2.0.
O grande beneficiário da globalização 2.0 foi a Ásia, mas com contornos que mudaram entre 1990 e a primeira década do século XXI. O modelo inicial de sucesso na Ásia era o Japão pelo aumento espetacular de sua renda per-capitaentre 1945 e o final dos anos 1980. A forma de organização de seus grupos empresariais, as técnicas de gestão da produção e da qualidade, mais a presença de uma instituição financeira dentro do grupo (Keiretsu) desafiavam o modelo de capitalismo de mercado dos Estados Unidos[11].
Os benefícios do aprofundamento deste segundo ciclo da globalização migraram de forma crescente para a China com a incorporação de diversos elos das cadeias de valor situados nas suas ZEE e, depois, por toda a China. A China, porém, copiou várias das instituições do capitalismo de mercado dos Estados Unidos e a rápida acumulação de capital por trabalhador (embora ainda em níveis baixos, segundo a Penn Table), derivada da sua única e elevadíssima taxa de poupança, permitiu um forte crescimento do produto e renda per-capitada China e toda a região.
Essa rápida acumulação de capital por trabalhador na China e na Ásia na forma de construção residencial, infraestrutura e capital físico para a indústria, serviços e agricultura levou a um super-ciclo de alta no preço das commodities. O período entre 2003 e 2008 assistiu a uma rápida e expressiva elevação de todos os preços de commoditiesmetálicas, agrícolas e energia após meio século de queda real contínua, o que trouxe um aumento na renda derivada das exportações de matérias primas da América Latina e África, entre outros países de renda elevada que também se beneficiaram como Austrália, Nova Zelândia e Canadá.
Em suma, o processo de globalização iniciado nos anos 90 beneficiou todas as regiões do globo, mas esta fase da globalização do capitalismo levou a uma mudança no eixo econômico do mundo na direção da Ásia, a região mais populosa do mundo e que iniciou uma elevação acelerada da renda per-capita. Outra grande consequência da maior abertura comercial e integração ao capitalismo da chamada Globalização 2.0 foi a elevação do poder de compra de 1 bilhão de trabalhadores, os quais produzem o sustento de 40% da população mundial[12].
5. From Deep-Globalization to De-Globalization
Este período de globalização crescente e profunda produziu impactos no marco regulatório dos países e resultou na elevação da renda dos mais pobres, mas sofreu uma mudança importante com a Grande Crise Financeira Global (GCF) em 2008.
Um fato marcante da GCF foi a percepção pela sociedade e governos que o capitalismo de mercado era suscetível a fortes crises financeiras, enormes quedas na produção, desemprego elevado e duradouro, reduções na renda per-capita, grandes falências e perdas significativas de poupança financeira.
A magnitude da crise levou ao criticismo e a movimentos de protesto contra a concentração de renda, riqueza e poder nos mais diversos países, desde Occupy Wall Street(2011), a Primavera Árabe (2011-2013), Turquia (2013) e Brasil (2013-2016).
O protagonismo do capitalismo ocidental se viu desafiado pela ascensão da China e seu capitalismo de Estado, o qual manteve taxas de crescimento muito mais elevadas do que o Ocidente que permaneceu estagnado por meia década após a crise. Os Estados Unidos acumularam elevados déficits e dívida pública e a Área do Euro se viu na difícil situação de criar mecanismos de apoio financeiro aos países com maior deterioração fiscal e bancária entre 2011 e 2013, o que envolveu esforços até para evitar o colapso da moeda comum criada apenas uma década antes da GCF[13].
A GCF de 2008 criou de certa forma novos contornos para a globalização e, de outra maneira, se sobrepôs aos efeitos de mais uma grande onda de mudança tecnológica.
A mudança tecnológica se concentra desta vez no uso intenso de inteligência artificial (IA) para a análise de grande volume de dados digitais gerados incessantemente (Big Data), seja pelas ações diárias dos indivíduos enquanto consumidores, ou mesmo enquanto cidadãos. Big Datae IA permitem que robôs identifiquem padrões de comportamento cotidiano e interajam com o ser humano para oferecer conveniências, muitas vezes sem que o humano perceba a extensão da interação com a máquina, ao mesmo tempo em que a mudança tecnológica muda o conceito de valor agregado por um produto ou serviço[14].
A possibilidade da manufatura aditiva (chamada de impressão 3D) com serviços inteligentes associados ao produto (de conveniência ou outros) reduz a importância do baixo custo da mão de obra como fator de atração para a localização de operações das grandes empresas transnacionais. O serviço de grande valor, ou a personalização do produto por meio da coleta e processamento de dados cotidianos (ou a personalização da simples experiência do uso do produto) pode ser feito a distância do mercado consumidor por meio da computação em nuvem.
A necessidade de atrair e reter a atenção do consumidor passa de forma cada vez mais crescente a exigir uma mão de obra qualificada e capaz de lidar com IA, algoritmos e análise de grande quantidade de dados espalhados pela nuvem.
As empresas com modelos de negócios tradicionais, margem de lucro protegidas e operações em quadros jurídicos estabelecidos se tornaram na última década sujeitas a enfrentar a entrada de novos competidores, muitos de pequenas escala, mas capazes de ameaçar suas margens e posições de mercado[15].
O próprio conceito de inovação ganhou novos elementos, pois a inovação deixou de ser feita pela grande empresa transnacional para ser feita por pequenas startupsde tecnologia que possuem um outro olhar sobre o mercado, onde muitas vezes as informações sobre os consumidores fornecidas pelo Big Datalevam a estratégias mais eficientes do que a gestão fundamentada na experiência e legado de conhecimentos dos conselhos de administração, CEOs, CFOs.[16]
A mudança tecnológica está levando a uma “plataformização” das empresas e dos mercados, ambas com consequências profundas. No caso das empresas, o conceito de core businessperdeu importância, pois as empresas realizam agora uma série de atividades paralelas com o uso intenso de informações digitais que podem se expandir muito além dos negócios tradicionais.
A capacidade de “personalizar” o produto para uma experiência extraordinária”, ou o serviço associado a sua posse, ou apenas ao seu uso, ganhou importância e a expansão da produção em massa a baixo custo que marcou o crescimento das empresas desde o pós-Guerra e a fase da Globalização 2.0 perdeu parte do sentido.
Os serviços são, na maioria das vezes, oferecidos de forma gratuita, em troca apenas da abertura das informações pessoais do usuário que vão alimentar os gigantescos bancos de dados a serem analisados por algoritmos e IA.
A questão aqui é o surgimento da possibilidade de uma troca entre a manutenção da privacidade do indivíduo, ou a possibilidade de receber ofertas de conveniência no momento do consumo, uma troca que ainda não possui limites claros; além de quais são as potenciais consequências que venham a limitar a liberdade de comportamento do indivíduo no futuro, dado todo o registro pretérito de sua privacidade[17].
Outra consequência do surgimento das “empresas plataformas” (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google, nos Estados Unidos, e outras 5 Big Techsna China) é que estas empresas apresentam um custo marginal risível para expandir globalmente as suas atividades. A sua capacidade de atender novos clientes em qualquer lugar do mundo, sem aumento do custo marginal, é uma enorme barreira a entrada de novas plataformas concorrentes. As grandes “empresas plataformas” desenvolveram assim um enorme poder de mercado que ficou concentrado nas duas maiores economias do mundo, Estados Unidos e China.
Outra mudança fundamental na estrutura da concorrência de mercado fica para as empresas que oferecem os seus produtos por meio destas “plataformas”. A elasticidade-preço da demanda de seus produtos ficou enorme, o que é uma oportunidade para pequenas empresas que buscam entrar no mercado, mas, ao final, termina sendo uma pressão enorme nas margens de lucros de todas as empresas, sejam elas grandes transnacionais ou pequenas startups.
O mundo do trabalho também se altera de forma radical. As empresas passam a necessitar de trabalho especializado a um ponto de não conseguir sustentá-lo em período integral, o que exige que o trabalho especializado desenvolva vários vínculos simultâneos de trabalho e remuneração. Empresas startupstambém passam a necessitar de trabalhadores que corram o risco do empreendimento, o que torna o conceito de remuneração por risco, resultado e mérito mais acentuado e criam uma sensação de insegurança sobre a regularidade dos rendimentos futuros do trabalho[18].
Uma terceira consequência, esta de cunho macroeconômico, é uma tendência deflacionária grande que, no limite, pode permitir às economias operarem com taxas de desemprego mais baixas sem que apresentem pressões de custo ou inflação, ou até mesmo crescerem mais rapidamente sem pressões inflacionarias.
A adequação da infraestrutura aos novos contornos da globalização também sofre consequências. A capacidade de computação em nuvem, uso e atualização de softwares, conectividade móvel, uso de sensores e internet das coisas, número de aparelhos celulares inteligentes e o tamanho da banda da conexão disponível por usuário ganham uma relevância que não existia uma década atrás.
Embora toda a mudança tecnológica recente seja capaz de permitir um aumento expressivo da produtividade do trabalho e que as economias operem com menor desemprego sem pressionar a inflação, o sentimento predominante na sociedade (e especialmente no mundo do trabalho) é de medo dos efeitos das mudanças. Todas as mudanças tecnológicas anteriores substituíram o trabalho bruto, ou a força física, mas desta vez substitui também o trabalho intelectual e a capacidade de formular conclusões, ou mesmo tomar decisões, a partir da análise de dados[19].
As firmas com suas margens de lucro sob forte pressão necessitam de trabalho especializado, mas não em período integral. As startupsprecisam de trabalhadores que partilhem o risco do negócio e surge uma necessidade de trabalho sob encomenda, disponível durante a elaboração ou execução de um projeto específico, o que estende o risco do capitalismo para o mundo do trabalho, algo totalmente novo e distinto da globalização 1.0 e das duas primeiras décadas da globalização 2.0.
Embora estas tendências sejam difíceis de se antever, outra percepção é que a destruição de postos de trabalho pela adoção de novas tecnologias pode ser maior que a geração de postos em outros setores, ou pelos seus efeitos sobre um possível crescimento mais acelerado do produto per-capita.
Surgiu uma visão distópica na sociedade em que a taxa de desemprego global pode se elevar por um período que pode chegar a uma década, até que a sociedade e a economia sejam capazes de lidar com essa mudança acelerada chamada de 4aRevolução Industrial e que acontece desta vez de forma mais rápida e disseminada por mais setores do que nas 3 revoluções anteriores em 1760, 1890 e 1960[20].
O temor de uma vida pior para si próprio e para os filhos levou a que sociedades ricas optassem pela busca de maior segurança, o que tornou a globalização um alvo fácil de culpar pelos problemas no mercado de trabalho. O ano de 2016 registrou dois eventos que marcaram a desaceleração do processo de globalização profunda iniciado nos anos 90. O primeiro foi o plebiscito que levou ao Brexit em maio e o segundo foi a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em novembro.
Ambos eventos foram fatos marcantes de um processo de desaceleração do processo de globalização profunda. Em uma frase, o mundo caminhou from deep globalization to de-globalization, embora “des-globalização” não signifique a reversão do processo, mas somente uma perda (talvez expressiva) de velocidade do processo durante um período medido em anos. Os dois anos pós-Trump foram marcados pelo esvaziamento da Parceria Trans-Pacífico, a repactuação da relação dos Estados Unidos com o México e a nova saída do Irã dos fluxos de comércio pelo retorno das sanções americanas.
A manufatura aditiva, ou a possibilidade de robotização crescente da produção, acompanhada de serviços digitais personalizados, permitem que parte da produção de bens retorne aos países de renda per-capitae salários elevados, embora não permita o retorno total da indústria. Na verdade, a mudança tecnológica, os efeitos da GCF e seus efeitos no mundo do trabalho levaram a algumas rupturas na globalização 2.0 e uma nova re-divisão do trabalho entre os países e regiões está em curso, o que significa novos contornos para a economia global[21].
Em um futuro próximo, o mais provável é que o interesse das grandes empresas americanas, as mais globalizadas do mundo e sediadas no país que as possui em maior número, leve a um novo ciclo de globalização marcado por estes novos contornos surgidos recentemente. Especula-se que esta venha a ser a Globalização 3.0, uma nova fase após a desaceleração atual e sem o interregno de ¾ de século que separou a Globalização 1.0 da 2.0.
6. From De-Globalization to Re-Globalization
A nova fase da globalização vai apresentar alguns elementos que ainda não estão definidos, entre eles, o papel dos Estados Unidos e o seu grau de engajamento em questões que dizem respeito a todos os países, como a segurança global pelo papel americano de polícia do mundo derivada de sua capacidade única de intervir em conflitos militares, além do grau de participação dos Estados Unidos no Acordo de Paris e na coordenação e cooperação global diante da mudança climática, assim como a postura americana diante da imigração de trabalhadores de países pobres, ou participantes de guerras ou conflitos militares. Fundamental também, obviamente, será a postura dos Estados Unidos em relação ao livre comércio e ao livre fluxo de capitais, aspectos chaves para a próxima fase de re-globalização do mundo.
O segundo elemento é o grau de extroversão da China, pois não se sabe até que ponto a China está disposta a uma maior abertura comercial no sentido de importar mais de outras regiões e reduzir o seu elevado superávit comercial com o mundo.
Alguns aspectos da extroversão chinesa já estão presentes, como o aumento do investimento direto chinês no mundo, até a manutenção de uma característica que se tornou quase que única da China: os empréstimos de governo a governo, uma importante ferramenta de política externa e apoio de governos de países em desenvolvimento que se encontram fora do mercado de capitais global[22].
O investimento direto no exterior reflete uma nova fase do crescimento chinês, onde as empresas chinesas adotam a “plataformização” da produção. Parte das etapas da produção industrial da China já é feita em países vizinhos, como o Vietnam, Laos e Cambodja, o que está levando a formação da cadeia de valor das empresas chinesas. O investimento direto chinês também busca fontes de matérias primas, alimentos e energia ao redor do mundo, em especial na África e América Latina.
Porém, as mudanças nos contornos do que foi a globalização 2.0 para o que deve ser uma nova fase da globalização limitam o espaço para a China continuar a crescer dentro da mesma estratégia de receber cada vez mais elos das cadeias de valor em busca de trabalho de baixo custo e excelente infraestrutura. O esgotamento do potencial desta estratégia deixa os governantes da China temorosos que a economia do país termine presa na Armadilha da Renda Média[23].
A China sofre a concorrência (em parte criada pelo próprio investimento chinês) dos países de renda per-capitamais baixa no leste e sul da Ásia nos produtos de baixo valor agregado, ao passo que a transição para a competição na escala de produtos de valor mais alto se dá contra países de renda per-capitamuito mais elevada do que a China, como os Estados Unidos e os mais sofisticados da Europa e Ásia.
A China precisa das instituições das economias de mercado para combinar capital e trabalho da forma mais eficiente possível, inovar e seguir acumulando capital por trabalhador de maneira que a produtividade total dos fatores floresça e a permita superar a armadilha da renda média. A China precisa também de custos de transação muito mais baixos, mas não está claroquais serão os contornos da nova globalização que vão servir como baliza para o desenho e implementação do novo conjunto de regras (instituições) que levem ao bom funcionamento dos mercados[24].
7. A Nova Globalização
A rápida mudança tecnológica e seus impactos sobre a geração de valor, a organização das empresas, funcionamento dos mercados e o mundo do trabalho limitam a possibilidade de sucesso de outros países que tentem replicar o modelo chinês usado na globalização 2.0 nesta nova fase da globalização que está por vir.
A própria China visualiza o esgotamento de seu modelo iniciado nos anos 80, e busca alternativas, como a Silk Road, também chamada de Belt and Road Initiative, a qual compreende uma rede sofisticada de transporte por ferrovias e rotas marítimas entre a China, Europa, Ásia Central e Sul, Oriente Médio e leste da África.
O mundo está se organizando para substituir a uniformização da produção em massa, espalhada pelo globo para reduzir custos, pela personalização da produção, ou da simples personalização da experiência do uso de um bem ou produto. Serviços sofisticados, oferecidos de acordo com preferências descobertas pelas “pegadas” digitais cotidianas dos indivíduos e seu processamento por máquinas inteligentes se tornaram a nova fronteira da geração de valor. As empresas, as instituições que regulam o funcionamento dos mercados e as relações de trabalho precisam ser organizadas de forma completamente nova[25].
Uma frase recorrente em apresentações e seminários do República do Amanhã sintetiza os desafios de um país preso na renda média como o Brasil: temos a “agenda do passado’’, formada por problemas antigos sobre os quais ainda nos debatemos, e temos a “agenda do futuro” que envolve questões muito mais complexas, mas que precisamos endereçar de forma simultânea aos problemas do passado para que o Brasil não perca (novamente) o bonde da história[26].
As instituições brasileiras não foram favoráveis para que o país retirasse benefícios da globalização 2.0, e são menos ainda para a globalização 3.0. O Brasil recebe há duas décadas grande volume de capitais estrangeiros na forma de investimento direto, ou compra de participação acionária nas (poucas) empresas de capital aberto. Porém, a produtividade, ou produto por trabalhador, segue estagnada há cerca de quatro décadas e chegou ao ponto de regredir quando políticas de intervenção do Estado nos mercados típicas dos anos 70 foram re-editadas no início desta década.
O Brasil se tornou um usuário qualificado de várias plataformas globais, o que é favorável para os consumidores locais, mas precisa ir muito além no avanço da flexibilidade para o bom funcionamento dos mercados e para criar novas formas de combinação entre capital e trabalho, além de maior facilitação para a tomada de risco pelo empreendedor. A possibilidade de contratação do fator trabalho no Brasil é extremamente restrita e regulada[27], o que vai na direção contrária das necessidades do uso das novas tecnologias que exigem baixos custos de transação.
O mundo do trabalho no Brasil precisa de uma mudança total que retire instituições extrativas (no sentido Acemoglu-Robinson), como encargos sobre os salários, e simplifique as regras de contratação e demissão de forma que sejam extensíveis a todas as formas de relação que surgem com a 4aRI. A desigualdade de capital humano, produtividade e renda no país é muito elevada e permitir que as pessoas trabalhem das mais diversas formas é necessário para aumentar a especialização, o produto por trabalhador e proporcionar maior regularidade dos rendimentos.
O país também possui boa conectividade na forma de um grande número de aparelhos celulares e grande cobertura para acesso móvel a internet, mas deixa a desejar na largura da banda ofertada para cada usuário e sofre pela baixa qualificação da população em idade de trabalhar para o uso de tecnologias que envolvem computação em nuvem, análise de Big Data, elaboração de algoritmos e processos de produção inteligentes.
O acesso a novas tecnologias pelo menor custo possível também se tornou uma nova condição para o aumento da produtividade. Uma economia fechada ao comércio exterior como a brasileira, além de sofrer com o isolamento geográfico, se tornou um desenho institucional ainda mais inadequado aos contornos cambiantes do que deve ser a globalização 3.0.
A abertura unilateral da economia brasileira para facilitar o acesso a bens de consumo mais atualizados e a novas tecnologias embutidas em máquinas e equipamentos se tornou uma opção citada de forma frequente como capaz de trazer maiores benefícios para o aumento da produtividade do que a (lenta) negociação de acordos comerciais nesta fase em que a globalização perde velocidade. Acordos comerciais envolvem hoje mais o acerto para a adoção de padrões de qualidade de produtos a serem transacionados no mercado do que tarifas de importação.
Uma economia continental como a brasileira, em que metade do território está coberto pela Amazônia e outro 1/5 é semi-árido, ambos com custo de transporte elevado, pode retirar benefícios de tecnologias como a manufatura aditiva, conectividade e serviços associados personalizados por região se o acesso a tecnologias, as regras e instituições para seu uso forem flexíveis e os incentivos de mercado para a sua adoção funcionarem de forma clara e eficiente. Um aspecto da nova globalização é a oferta de produtos “glocais”, os quais combinam características globais de atualização tecnológica com aspectos (ou serviços) locais do mercado[28].
Desajustes macroeconômicos que levam a taxa de juros neutra elevada, baixa poupança no sentido macroeconômico, propensão a inflação, baixo comércio com outros países e uma forte carência da infraestrutura tradicional (transporte, portos) eram problemas na globalização 2.0 que se tornam ainda mais críticos na Nova Globalização. Desenhar e implementar novas instituições adequadas ao futuro se tornou crítico, assim como a superação tempestiva dos problemas do passado[29].
[1]Marcos Troyjo com toques do livro Apelo a razão.
[2]Marcos Troyjo
[3]Dados do Maddison Project
[4]Otaviano Canuto com toques de Marcos Troyjo e do autor.
[5]Otaviano Canuto.
[6]Soma do autor com base nos dados da Penn Table. Normalmente o número citado é a incorporação de 1 bilhão de novos trabalhadores de ex-países comunistas. A população engajada no mercado de trabalho em 1991 era de 2,26 bilhões, segundo a Penn Table.
[7]Otaviano Canuto.
[8]Otaviano Canuto.
[9]Marcos Troyjo
[10]Marcos Troyjo e Otaviano Canuto
[11]Marcos Troyjo e Otaviano Canuto
[12]Otaviano Canuto, acrescido de dados da Penn Table.
[13]Marcos Troyjo
[14]Octávio de Barros, Otaviano Canuto e Marcos Troyjo
[15]Octávio de Barros.
[16]Ovtávio de Barros com toques de Marcos Troyjo.
[17]Octávio de Barros.
[18]Octávio de Barros.
[19]Octávio de Barros, acrescido da discussão em outros Seminários e apresentações.
[20]O livro SCHWAB, Klaus: The Fourth Industrial Revolution. New York, Crown Publishing, 2016 traz a melhor análise sobre a 4a Revolução Industrial e as sua consequências para a sociedade
[21]Marcos Troyjo, Octávio de Barros e Otaviano Canuto.
[22]Marcos Troyjo.
[23]Canuto contou de uma entrevista para uma rádio na China. A audiência foi recorde devido ao interesse chinês pelo tema, acrescido do fato de valorizarem a opinião de um brasileiro que trabalha no World Banke vivencia o problema em seu próprio país há quase 4 décadas.
[24]Otaviano Canuto, Marcos Troyjo e Octávio de Barros.
[25]Otaviano Canuto, Octávio de Barros e Marcos Troyjo.
[26]Octávio de Barros, em várias apresentações e seminários.
[27]O Global Competitive Index do World Economic Forum coloca o Brasil com o segundo maior custo de contratação e demissão entre 140 países, a frente apenas da Venezuela.
[28]Autor com toques de Marcos Troyjo.
[29]Uma leitura e análise das questões atuais enfrentadas pela economia brasileira está em GIAMBIAGI, F. e ZEIDAN, R. Apelo a razão: a reconciliação com a lógica econômica. Rio de Janeiro, Record, 2018.